(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
A literatura política recente nos mostra que a fronteira entre a democracia e a ditadura já não é tão clara como costumava ser. Ao contrário do que acontecia no passado, democracias morrem aos poucos e não mais por tiros, bombas e canhões. Essa morte pode se dar de diferentes formas: por meio de projetos de lei, da ocupação de instituições, de ataques repressivos (porém legais) e ameaças mais ou ou menos veladas. No entanto, é certo: você nunca vai ter certeza do que está acontecendo.
Este é o caso do Brasil de hoje no que diz respeito à liberdade de expressão. Há uma censura oficial instaurada? Não. Estão sendo aprovadas leis, decretos ou medidas do governo que desobedeçam a Constituição de 1988? Não.
No entanto, uma série de ações ao longo de 2019 dificultaram a vida de quem produz arte, ciência e pensamento e mesmo colocaram em xeque a continuidade de programas de estímulo à ciência, às artes e à cultura. Como se lê numa carta aberta publicada no jornal inglês The Guardian “o governo Jair Bolsonaro, com a colaboração de seus aliados de extrema direita, tem destruído aos poucos, de maneira sistemática, as instituições culturais, científicas e educacionais do país, assim como a imprensa.” Entre os signatários da carta, que lista uma série de ataques à liberdade de expressão em 2019, estão os compositores Chico Buarque – vencedor do Prémio Camões, contra a vontade de Bolsonaro –, Caetano Veloso – perseguido, como Chico, pela ditadura – e o escritor amazonense Milton Hatoum, cuja obra está pautada na memória da ditadura e na cultura amazônica.
Tudo começa com a paranoia do ideólogo do governo, Olavo de Carvalho, para quem “o governo militar não entendia nada do que estava se passando. Eles estavam perseguindo os comunistas no meio do mato e os comunistas tomando as escolas.” Em seguida, desmontam-se ministérios, como o da Cultura, submetendo-os a outras pastas, e entregam-se ministérios e secretarias como o da Educação e dos Direitos Humanos – convertido em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – a pessoas que tenham afinidade ideológica com o chamado olavismo. É o caso, por exemplo, do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e de Damares Alves, a pastora evangélica que comanda o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ambos têm como objetivo a guerra cultural olavista-bolsonarista. “Limpar” o Brasil da esquerda.
A caça aos comunistas inexistentes, que justificou 21 anos de ditadura no Brasil (entre 1964 e 1985), levou a um dos momentos mais terríveis da história brasileira, com o vídeo em que o secretário de cultura, Roberto Alvim, fazia alusão ao nazismo para divulgar o Plano Nacional das Artes, de caráter nacionalista. Demitido, foi substituído pela atriz Regina Duarte. Uma das figuras públicas mais conhecidas do Brasil, a atriz viveu o auge de sua popularidade entre os anos 1970 e 1990. Naqueles anos, vivia mocinhas românticas nas telenovelas e a ditadura vivia seu auge. Nos anos 1980, com a ruína da ditadura e a abertura política, viveu heroínas feministas – como a Malu Mulher – e mulheres fortes – como a Viúva Porcina, da telenovela “Roque Santeiro”, censurada no período ditatorial – e também no período democrático.
A sua nomeação foi recebida com algum alívio – ou tentativa de esperança – por parte da classe artística brasileira. Ainda que se posicione à direita e se assuma conservadora, a atriz, em diferentes momentos de sua vida, sempre se colocou contra a censura. Mas seria sua nomeação o fim, uma trégua ou um novo lance do governo em sua guerra cultural? Em se tratando do governo Jair Bolsonaro, nada é certo.
Para compreender melhor o atual cenário da censura no Brasil – na cultura e na educação – entrevistamos a jornalista Laura Mattos, colunista da Folha de S. Paulo, especialista em educação e autora do livro “Herói mutilado: Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura”.
NOTA: citada na entrevista, a reverenda Jane Silva, então a secretária adjunta da Cultura, nomeada pela atriz Regina Duarte, foi demitida na sexta-feira (7/2), um dia depois da realização da entrevista.
Fotografia: Renato Parada