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A Resistência: quarentena na rua
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Sociedade
25/06/2020

(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)

I

Olá, eu sou a Maria Almeida. Estou a gravar na redação do Fumaça, no nosso estúdio, que fica no Bairro Alto, em Lisboa. Não vinha cá desde o início de Fevereiro, o que neste momento me parece uma eternidade. 

Assim que a pandemia chegou, deixei-me ficar por casa. Saio para duas únicas tarefas inadiáveis: ir à mercearia da rua de baixo, uma vez por semana; e passear o cão, um castro laboreiro de 45 quilos, duas vezes por dia. Ocupo os meus dias com trabalho, leio livros, ouço música e podcasts e vejo filmes. Apanho sol no terraço de manhã, dou dois dedos de conversa à vizinha de baixo, pela tarde. Vou vendo as notícias durante o dia, no computador, e cozinho coisas rápidas que, na maioria das vezes, acabam na boca do cão pastor que divide casa comigo. Tenho contrato de trabalho e um salário que me paga todas as contas. Comprei máscaras, álcool em gel, um termómetro, e medicamentos na farmácia.

Para mim, a quarentena tem sido fácil. Consigo cumprir todas as regras impostas pelo governo e proteger-me a mim e aqueles que me rodeiam. 

Mas nem toda a gente têm esse privilégio. O privilégio de ter uma casa, água, luz, comida, um trabalho que pague as contas. Um privilégio que, na pandemia que vivemos, é um luxo. 

Como se faz quarentena sem uma casa? Como se seguem as recomendações de higiene da Direção-Geral de Saúde quando não há água e sabão para lavar as mãos? Como se compram máscaras, luvas, e álcool em gel se o dinheiro é cada vez mais escasso? Como se ganha dinheiro tocando música na rua, se toda a gente é obrigada a ficar em casa?

Com o confinamento, os pedidos de ajuda alimentar dispararam. Até ao final de abril, a Rede de Emergência Alimentar, recém criada pelo Banco Alimentar contra a Fome, já recebeu mais de 12 mil pedidos de ajuda, de famílias ou de grupos, que abrangem cerca de 58 mil pessoas. A Câmara Municipal de Lisboa criou quatro centros de acolhimento temporário para pessoas em situação de sem-abrigo, que têm capacidade para receber cerca de 220 pessoas. 

Quando, no início desta crise, falamos aqui no Fumaça sobre se faria ou não sentido fazer uma peça sobre o novo coronavírus decidimos que não. Não costumamos fazer atualidade e achávamos que o tema já estava a ser muito escrutinado pela comunicação social em Portugal e no mundo. Mas, à medida que as ruas iam ficando vazias e que víamos cada vez mais pessoas em situações precárias e expostas ao vírus, muitas em situação de sem-abrigo, apercebemo-nos de que era importante que estas histórias fossem ouvidas na primeira pessoa. 

No episódio de hoje, falam algumas pessoas que habitam nas ruas de Lisboa e que resistem à pandemia, mesmo quando o distanciamento social e a quarentena são praticamente impossíveis.

Seja toda a gente bem-vinda ao Dois Pontos, um programa Fumaça de histórias contadas com tempo.

II

Wilfredo Mergner

Wilfredo Mergner

Ricardo: Fiquei de vir ter com um senhor que conheci ontem […], que estava a tocar guitarra ontem, lá p’rás 9 da noite, na Rua Garrett. Acho que é isso que estamos a ouvir.

Will: Ricardo?

Ricardo: Sou eu. Tudo bem? Como estás?

Will: Ainda me faltam quatro euros para pagar o meu quarto. Não há ninguém e eu estou 

aqui. Que horas são?

Ricardo: São 10h25.

Will: Estou aqui desde as 9h.

Will: Não sou um homem tão pobre como isso. Mas é a situação.

Ricardo: Mas conta-me um bocado da tua história. Sei que não temos o dia todo. É uma história grande.

Will: Eu conheço Lisboa há mais de 25 anos. Sou músico. Conheces-me como músico. Sou guitarrista, embora esta guitarra não seja a minha guitarra de concerto. É uma guitarra barata. A minha guitarra de concerto foi roubada. Foi mesmo antes de…. Pronto. Conheço Lisboa há mais de 25 anos. Já fui casado com duas portuguesas.

Ricardo: Não és português?

Will: Não, não. Eu sou suíço. Tenho outra profissão além de músico. Sou tradutor e intérprete. Fui docente, professor, de intérpretes no ISLA, enquanto existia, o Instituto sobre as Línguas e a Administração. Eu lecionei lá dez anos. Mais. 11 anos. E…. é uma história sempre difícil de contar. Tenho dois filhos já crescidos. A minha filha está nos Estados Unidos da América. O meu filho está em Londres. Além disso, tenho uma namorada que está em Dakar, Senegal. Ela é africana. Nós tivemos problemas com os documentos dela. Ela não podia entrar na União Europeia. Entretanto, deu-se aquela calamidade. Agora não pode entrar na UE, nem em lado nenhum, enquanto isso dure. Por isso estou um bocado pendurado. Ela não me deixou pendurado. Eu é que fiquei pendurado, por ter tomado decisões erradas.

Ricardo: O que é que queres dizer com isso?

Will: Eu devia ter dito “Vamos embora”, porque ela foi extraditada. Deu problemas. Foi uma situação muito esquisita. Estivemos dois anos juntos e ela teve de sair mesmo de Portugal. Entretanto, íamos tratar disso e tivemos esta calamidade. Eu fiquei pendurado. Fiquei sozinho. Estou sozinho. É o que mais me custa de estar aqui. Estou sozinho. Embora conheça muita gente. Mas, mesmo assim, estou sozinho. Sinto-me sozinho. Estou nesse quarto. Tento aguentar esse tempo. Estou aqui.

Ricardo: Que quarto é que é?

Will: Uma pensão barata. Muito barata.

Ricardo: Quanto custa?

Will: 12,5€. Ainda devo duas noites… Por isso ela não me deixa entrar sem pagar. Por isso tenho de pagar mesmo.

Ricardo: Mas por que é que foste para lá? Tinhas dito que tinhas uma casa.

Will: Quem está em minha casa é a minha ex-mulher. Fui lá no dia de Páscoa, a essa casa. Como não tenho telefone fui lá ao calhas. Roubaram-me o telefone, juntamente com a guitarra. Fui lá ao calhas. Não estava ninguém. A casa estava fechada. Eu não podia forçar a entrada. O que é que podia fazer? Mas o que ia contar… A gente perde-se um bocado. Contar uma vida é muito difícil, em cinco minutos. Eu tenho uma terceira profissão. Além de tradutor e intérprete, tenho um background académico. Sou formado em antropologia. Sou antropólogo. A minha formação académica é a antropologia.

Ricardo: Em Portugal?

Will: Não. Lá. Na Universidade de Basileia e na Universidade de Freiburg [Friburgo, Alemanha]. Aqui, com Antropologia, nunca trabalhei. Embora isso me dê um background que deu para outras coisas. A tradução, a interpretação. Eu falo e escrevo cinco línguas. Fui professor para isso… só para três [línguas], não para as cinco. […] Além disso, já fiz muita música, aqui em Portugal. Entre outros, sou um dos fundadores de uma banda muito conhecida, a Resistência. Conheces os Resistência?

Ricardo: Conheço. Os meus pais ouviam Resistência.

Will: Pois, pois. Eu sou o solista dos Resistência, da banda.

Ricardo: Qual é o teu apelido?

Will: O meu nome que aparece lá é Fredo Mergner. Sou o guitarrista, o solista. Mas o meu nome é Willfredo Mergner. Sou Wilfredo. Will. Como o Will Semedo.

Ricardo: Tu costumas tocar na rua?

WillYah. Costumo tocar. Eu toco na rua…. só estou aqui por causa disso. Tenho um grande reportório. Já tive vários repertórios de música clássica, guitarra clássica. Dei concertos… Não no mundo inteiro, mas pode-se dizer que em meio mundo. E também venho do jazz. Toco jazz. Sou guitarrista de jazz.

Ricardo: Quanto dinheiro é que fazes?

Will: É muito…. Eu faço lá dinheiro…. [Tropeça nas palavras] Também varia muito. Há dias em que faço pouquíssimo… 20, 30. Há dias em que faço 200. […] É um público internacional… ‘, 20 euros é normal. Assim gorjetas. Não é uma atrás da outra. Mas em dias que correm bem vale 100, 150 euros.

Ricardo: E hoje quanto é que fizeste?

Will: Hoje não fiz nada. Não fiz nada. Nada. Hoje…. Estava há espera de mais pessoas.

Ricardo: Quantas pessoas viste passar?

Will: Hoje fiz 12 euros, 12, 13 euros.

Ricardo: Que idade é que tens?

Will: Tenho 60 anos. Estou com mau aspeto porque perdi oito quilos.

Ricardo: Perdeste oito quilos?

Will: Não por falta de comida mas por falta de… [Suspira] perder o hábito de comer. Por estar sozinho. Eu às vezes chego ao fim do dia e noto que não comi. Por que é que não comi? Eu tinha comida. Depois não me apetece comer. Estou com fome. Como qualquer coisa. É assim. Caí um bocado fora do ritmo da alimentação diária, normal. Um bocado por estar sozinho. Se calhar sou um bocado masoquista. Não sei. Tenho de ser masoquista. Uma situação destas despertou o masoquismo em mim.

Ricardo: Eras capaz de tocar uma música?

Will: Claro. Toco uma belíssima.

III

Ângela e o companheiro, Orlando

Ângela e o companheiro, Orlando

Ângela: Sou a Ângela Silva. Tenho 18 anos. Estou a viver na rua há dois anos, numa carrinha. O meu marido tem 22 anos. Sofre de asma crónica e rinite alérgica. Estamos a viver debaixo das árvores e ele é alérgico ao pólen das árvores. O meu companheiro é seguido nas consultas de pneumologia de Santa Marta [hospital, em Lisboa].

Eu não tenho quem me ajude. A minha sogra mete a gente fora de casa. A minha sogra não quer saber da gente, para nada mesmo. Ela disse que nos acolhia. Voltamos para casa dela. Quando estou lá em casa ela atazana-me a cabeça. Não me quer dentro de casa. Fui à câmara municipal fazer uma nova candidatura e era por email. Eu não sei fazer nada por email. Não sei tratar com esses meios. Não sei como fazer à minha vida. Estamos nestas condições. Não temos higiene nenhuma. Não temos ajuda de ninguém. […] Estou a viver na rua com o covid-19. O meu companheiro a sofrer de asma crónica, que é mesmo assim, rinite alérgica, e eu tenho muito medo, pelo meu marido. O meu marido pode morrer se apanhar o vírus. 

Margarida: Como é que fazem o vosso dia-a-dia?

Ângela: O nosso dia-a-dia: a gente lava a cara aqui, faz as necessidades na rua com um balde, aqui atrás pelas árvores. Tomamos banho aqui também. Lavamos aqui a cara, como pode ver. Só peço que me ajudem, uma casa temporária por causa do covid-19. Eu não quero uma casa. Se estive dois anos fico mais um na carrinha. Não me importo. Só quero uma casa provisória, até a pandemia acabar. Não posso viver nestas situações com o meu companheiro assim. Não posso. Já liguei para a Santa Casa, para a Habita

Queriam pôr-me num pavilhão, separada do meu companheiro. Acha que vou viver separada do meu companheiro? E quem é que vai cuidar do meu companheiro? Eu lavo a cara na rua, lavo os dentes na rua… Eu como na rua, cozinho na rua… A gente, praticamente, vive na rua. Temos uma juventude pela frente. A gente queremos ser cidadãos portugueses como os outros. A gente queremos trabalhar. A gente queremos ter uma casa, uma vida. A gente queremos ter filhos. Queremos ser alguém na vida. E não nos deixam ser. A gente aqui não tem horário de dormir. Há sempre carros a passar, para trás e para a frente. Pessoas aqui sentadas, a fazer barulho. Às vezes aparecem aqui carros com música aos altos berros. A gente não temos horário de dormir. Às vezes dormimos sobre a manhã. Hoje eram 6h30 ainda estávamos acordados. Não temos horário de dormir. Não temos vida própria. Nada mesmo. 

IV

Inês: Os que são pobres às vezes fazem barulho. Também é verdade. Mas, às vezes, os pobres que dormem na rua tornam-se avariados da cabeça porque não têm o descanso suficiente. Não dormem. Era o que nos acontecia aqui, na tenda que me tinham dado. Não dormíamos o suficiente. Agora sim. Agora já durmo mais. Não é aquele dormir, por causa da dor de rins e da coluna. Mas já temos uns colchões velhos que eles aproveitaram do lixo, desinfetaram e puseram lá.

Ricardo: E que idade é que tem?

Inês: Tenho 73 anos, pela idade. Mas pela cédula só tenho 72. [Ri]

Ricardo: Porquê?

Inês: 72 anos e menos 11 dias. 

Ricardo: Porquê?

Inês: Porque eu e os meus pais éramos da província. Para registar as crianças tinham de andar 18 quilómetros. Não havia transportes. Tinham de ir a pé uma certa distância, talvez como daqui [Baixa, em Lisboa] a Sete Rios [zona de Lisboa, a 4,5 km do centro]. Depois tinham uma camioneta para ir à cidade de Chaves.

Ricardo: Há quanto tempo está em Lisboa?

Inês: Desde 1973. Ainda antes do 25 de Abril [de 1974].

Ricardo: Diga-me onde é que nós estamos para as pessoas saberem.

Inês: No largo ao pé da igreja de São Nicolau.

Ricardo: Na Baixa de Lisboa.

Inês: Na Baixa de Lisboa.

Ricardo: Estava a dizer-me que dormia aqui à frente da igreja.

Inês: Dormia aqui à frente da igreja. Dormi dois anos e tal.

Ricardo: Porquê?

Inês: Por falta de casa. Tínhamos casa. Fomos despejados, com isto de terem hotéis e hotéis e tudo o mais.

Ricardo: No dia 13 foi declarado o Estado de Emergência e as pessoas têm de ficar em casa.

Inês: Eu não tenho ficado em casa. Ao meu pai e à minha mãe não me privam, que já morreram. Morreram com a morte que Deus Nosso Senhor lhes deu. A mim também não há ninguém que me priva. Só se disserem “Não sai ninguém, ninguém, ninguém”. Aí, poderei ficar. Mas mesmo assim ainda me custará, porque tenho de sair, por causa das minhas articulações e das minhas pernas. Sofro muito dos ossos e da coluna. Tenho de sair, senão fico presa.

Ricardo: Vi que estava a pedir moedas. Como é que funciona agora, sem turistas, sem nada?

Inês: É pouca coisa. Estou aqui porque na igreja dão-nos o lanche. Duas sandes a um, duas sandes a ele, para o meu marido. E dão-nos duas peças de fruta, um iogurte, se há, um pacotinho de chocolate com leite. Aquilo que têm – que é mesmo assim. Venho ao meio-dia e à uma hora, que [é quando] dão. Aproveito e levo. E depois, olha, cinco cêntimos de um lado, 50 do outro, 20 do outro, um euro do outro…. Quer dizer, vai-se governando – mal vai-se governando.

Ricardo: E como é que se chama?

Inês: Inês.

Ricardo: Inês.

V

Mikhail

Mikhail

Mikhail: Mas o problema é que… Qual é o seu nome?

Ricardo: Ricardo.

Mikhail: Ricardo. Eu sou Miguel, ou Mikhail, em Ucraniano. Português é mais fácil, Miguel. O problema é que eu não trabalho, nem para fumo, nem para bebida. Eu não fumo e não bebo. Eu trabalho para o meu cérebro. Estava a estudar numa escola – não sei se conhece, a Vitorino Matono, de acordeão. Todo o mundo conhece. Foi uma escola muito conhecida nos anos 70 e 80. Já não me lembro. Vitorino Matono. Eu estudava, até pagava aulas de acordeão. Depois apreenderam-me a coluna. Com aquela coluna eu ganhava. Até agora, se tocar com coluna é outro som, sabe? Com coluna tenho acompanhamento especial para a coluna. Eu com este dedo não posso fazer o que um acordeonista normal faz. Eu não tenho duas falanges, está a ver?

Ricardo: Não trabalha durante o dia?

Mikhail: Trabalhar onde? [Riso] Eu fui despedido em 2009. Desde 2009 que não trabalho. Fui despedido.

Ricardo: Trabalha só a tocar?

Mikhail: A minha atividade agora é esta. A Santa Casa paga o quarto em Alcântara [freguesia na zona ocidental de Lisboa]. Eu tomei esta decisão quando não havia… Comida e outras coisas eu vou ganhar. Só que, agora, aconteceu isto e não tenho almofada financeira.

Ricardo: E como é que resolve isso?

Mikhail: Ganho um euro, dois. Está a ver? Um bocadinho.

Ricardo: Hoje tem quanto?

Mikhail: Tem lá estrangeiras também. Uns dois, três euros.

Ricardo: Mas isso dá para nada.

Mikhail: Sim.

Ricardo: Como é que vai comer?

Mikhail: Esparguete… arroz…. Eu sou vegetariano. Não como carne.

Ricardo: Como é que vai comer agora?

Mikhail: Tenho algum… Eu faço compras quando há um desconto. Arroz, batata…

Ricardo: E vai conseguindo assim?

Mikhail: Vou conseguindo assim. Claro que não dá para fazer desporto. Só assim… um bocadinho. 

VI

Vítor

Vítor

Margarida: Como é que se faz quarentena na rua?

Vítor: Olhe, antes de mais, eu não ligo a isso. Qual quarentena? Nem cinquentena! Não ligo a isso. Esquecem-se de nós. Dizem que há uns abrigos para os sem-abrigo. E há.

Margarida: Foi lá?

Vítor: Fui, mas só lá estive uma noite. Se aqui estou mal, lá estou pior. 

Margarida: Porquê?

Vítor: Muita gente junta. Deixam-nos entrar ébrios, com pacotes de vinho lá para dentro. Então: duas camas a seguir à minha estava um indivíduo cheio de pacotes de vinho, já vazios. Havia outro, uma cama a seguir à minha, para o outro lado, com o pénis na mão a urinar para o chão.

Margarida: Não há divisões, pois não?

Vítor: Aquilo é um retângulo, onde fazem futebol de salão. Pelo menos foi a esse que eu fui. Básquete. É um recinto de desporto.

Margarida: Por isso prefere estar aqui.

Vítor: Quando quero urinar, claro que não tenho nenhum urinol. Há ali um beco onde estacionam os automóveis. É um parque de estacionamento. Vou ali e urino. Vou ao balneário. Por acaso, já abrem aos sábados e ao domingo. Antes aos sábados e domingos era proibido. Mais alguma coisa, menina?

Margarida: Sim. Por acaso, nem me apresentei. Chamo-me Margarida.

Vítor: Eu sou o Vítor. 74 anos. Veterano de guerra. […] 13 anos de rua. Aqui, já vai em 14 meses neste canto.

Margarida: Nasceu na Mouraria?

Vítor: Não. Os meus pais é que são de lá. Os meus pais compraram lá uma casa. Depois venderam e foram comprar outra perto da Rua da Beneficiência, perto da Praça de Espanha, do Hospital de Santa Maria [Lisboa]. Eu vi o Hospital de Santa Maria a ser construído. Eu era pequenino, com quatro anos, e ainda me lembro. Havia miséria, mas pelo menos deixavam fazer uma barraca. Agora já nem me deixam ir para a praia. [Riso] Ao menos eu comprava uma tenda, ia para a praia e deixassem-me lá estar sossegadinho. Mas não. Até isso. 

Naquela altura, olhe, uma nota de 20, a que a gente chamava o Santo António, epá…. Eu gozava o que hoje não faço com 200 euros, ou 150 [euros]. Eu já não quero exagerar, mas 100 euros. É claro, eu tenho os meus vícios. Ainda hoje os tenho. Jogo. Mulheres. Sou um perdido. Perco-me nessas coisas. Desoriento-me e isto é um problema. E, então, arranjei algumas dívidas. Sabe que a máfia do jogo é um problema.Vendi a casa por 150 mil euros. Foi mal vendida. Aquilo era uma boa casa. Paguei o que tinha a pagar. O dinheiro com que fiquei ainda foi dando. Quando não tive dinheiro, quando se acabou o dinheiro, recorri às carrinhas. Enquanto tive dinheiro… Sabe que o dinheiro dentro do bolso não consente miséria. Eu sou assim. Há indivíduos que podem estar cheios de fome. Têm o dinheiro no bolso e não gastam o dinheiro. Preferem passar fome. Eu não. Um bom petisco, adoro. Um bom vinho. Quando como, bebo. Um bom vinho. Uma boa comida. Se não, tenho de me sujeitar a isto. Então estou sempre à espera. Agora só daqui a 15 dias. No dia oito, quando cai a minha reforma, lá vou eu sentar-me. Se já houver coisas abertas.

Margarida: Exato. Este mês não conseguiu fazer isso.

Vítor: Não. Não. Mas, olhe, também não tenho dinheiro menina. É o tabaco. É o cafezinho. E não só. Posso falar? Posso falar? Também fumo o meu haxixe e a minha marijuana. E, uma vez por outra, dou umas cabeçadas, […] o que eles chamam o crack, mas não é crack.

Margarida: Não sabia.

Vítor: Nem é cocaína. É umas substâncias…. Aquilo dá uma pancada na cabeça que até é bom. Sabe porquê? Quando essas substâncias são bem feitas está-se assim uma boa meia hora… O prédio pode cair que eu não me importo.

Margarida: Mas depois passa.

Vítor: Depois passa. Tudo passa. Nesta vida tudo passa.

Margarida: Sempre em Lisboa? Esteve sempre em Lisboa?

Margarida: Desculpe. Se preferir não falar disso.

Vítor: Como há certas coisas que não é para todos, é só para alguns… Eu a ver um certo número de coisas – que me dou mal com isso – a melhor coisa é andar para cima e para baixo. Norte a sul. Este, oeste. Pronto. Mas agora, desta vez, como já me sinto um tanto ou quanto cansado, o esqueleto começa a dar de si, fiquei por aqui. Esperando que as promessas que os nossos governantes fazem se concretizem. O que eu duvido bastante porque, políticos, daquilo que tenho visto, lido, é tudo uma cambada de mentirosos.

Margarida: Não acredita neles?

Vítor: Em nenhum. Em nenhum.

Vítor: A menina já viu o que está aí escrito? Não viu?

Margarida: Uma coisa que diz medo, não é?

Vítor: Venha cá. Isto é giz.

Margarida: Vi há bocado. Passei e vi.

Vítor: Olhe: este e este. Veja lá.

Margarida: Pode ler?

Vítor: Posso. “Vem vírus de contágio rápido. Medo. Proteja-se. A obediência cega ao Estado provoca danos irreversíveis. Saia à rua. Inspire ar puro. Insulte um polícia. Espirre nos banqueiros e cuspa nos políticos”. Aqui é praticamente a mesma coisa. “O distanciamento social provoca danos irreversíveis. E depois saia à rua. Vai ficar tudo mal. A culpa é do Estado e do capital”.

Margarida: O que é que acha disto?

Vítor: Acho que está bem. Porque esta coisa é tudo uma negociata. […] Olhe, quer uma amêndoa?

Margarida: Não, obrigada. Acabei de lanchar e estou mesmo cheia.

Vítor: E chocolate?

Margarida: Não, não quero, obrigada. Estou ótima.

VII

Emílio

Performance do Emílio

Ricardo: Como é que te chamas?

Emílio: Emílio.

Ricardo: Então conta-me o que costumas fazer.

Emílio: Faço uma performance de levitação, levitation, como diz a minha amiga alemã. Levanto lá os pés e não sei quê. É uma estátua, chamada uma estátua. Uns com um gajo assim, outros assim, não deixo de ser mais uma estátua de Lisboa.

Ricardo: Tu és, provavelmente, a estátua mais conhecida do Chiado, não?

Emílio: Também sou o único que cá trabalho [Riso]. Tinha de ser. Do Chiado, é. A Rua Augusta fica lá em baixo. Eu fico aqui em cima. Os outros lá em baixo também têm o seu grau. Cada um com o seu trabalho. O pessoal é todo conhecido e é fotografado. 

Ricardo: Mas por que é que dizes que era?

Emílio: Agora não está cá ninguém para nos ver trabalhar, nem para nos fotografar. Resultado desta maldição, digamos. Estamos todos parados. Está tudo em casa, como o resto de Lisboa: está parada. 

Emílio: O pessoal que vivia da rua como eu…. Sem ser eu há mais pessoas que vivemos da arte. Outros fizeram já outras coisas. Chegou a uma altura da nossa vida em que decidimos por isto, em que vivíamos o nosso dia-a-dia, do nosso trabalho. Respeitando os portugueses, os portugueses ganham menos e podem dar menos. É um bocado esse jogo. Por conseguinte, os camones é que sustentam mais isto. Com esta situação do corona, e do vírus à mistura – como eu digo na brincadeira: cornos já havia, agora só faltava o vírus e o vírus está cá – […] Sentiu-se isto a descer, foram dois dias, três. Estado de calamidade, internet, aquela situação de o pessoal saber logo o que se passa no mundo com as novas tecnologias e tu viste a rua tshhhh. Zero. [Impercetível] E eu assim “Vou ter de parar”. Depois comecei a ouvir que era de obriga, de obriga, de obriga. Eu não estava bem, bem, bem a ver, que nunca vivi uma situação destas. Acho que a maioria do pessoal nunca tinha vivido. Fiquei estupefacto, com medo, e tive de parar. Agora é o que vês aqui, com os teus olhos. Está a rua vazia. Ontem ainda era a Páscoa, os nosso hermanos espanholitos vinham aqui, o pessoal divertia-se, toda a gente ganhava dinheiro. Foi tudo pelo ar.

Ricardo: Tu agora como é que fazes dinheiro?

Emílio: Estou parado. Estou a trabalhar sem dinheiro. Estou parado. Escuta, agora não se pode em lado nenhum, caríssimo, ilustre, meritíssimo. Seja aqui, seja Espanha. Espanha então, ganda respeitinho pelos jovens. Lá ainda é pior. Lá tens de fugir mesmo. […] É o preço da globalização. Esta ideia foi de uma amiga minha que trabalha na câmara e disse-me: “Isto é o preço da globalização. Antigamente praticamente não havia quase aviões, os chineses não vinham para Portugal. Olha, hoje globalizamos isto. Se houver uma doença na China vem para aqui, assim ou assim, acaba por vir. Acusa com a interligação dos negócios, dos aviões”. C’est la vie. Tudo tem um preço, olha.

Ricardo: Tens sentido que há mais gente na rua? Digo mais gente a viver na rua?

Emílio: A viver na rua? Há, há, há. Eu conheci uma história de amigo meu dos tuk-tuks e me contou que viu um chavalo que trabalha nos tuk-tuks a dormir na rua agora. E há mais. Há mais. A gente é que não os vê. Uns fogem, outros nahum. Uns não vivem na rua. Juntam-se a amigos e coisas do género. Há sempre o plano B. Dormem dentro de um carro, que é o meu caso. Entendes? Mas as coisas ficaram mais difíceis. Só o cego é que não vê. Por isso é que até existem situações de ajuda, não sei quê e não sei que mais. Há muita gente aí que não dá nada a ninguém. Terá de ser mesmo uma forte razão para eles se chegaram à frente. Isto é emergência, calamidade. É o que você chama uma treta, está mau.

Ricardo: No teu caso, dormes no carro porque queres?

Emílio: Já tinha decidido. Estava há 15 dias a dormir no carro porque estava a esperar que isto da Páscoa funcionasse a 300 [%], como funciona todos os anos. Os espanhóis é sempre. Vêm para esta economia de bairro, bares e não sei quê, até começar o verão. E depois estava em plano ir para a Madeira. Tenho lá uns amigos, na Madeira. Já tinha falado com a Câmara. Só me faltava mandar o email. “Está tudo certo, sim senhor. Você tem de pagar a respetiva taxa de ocupação de espaço. Pah, pah, pah, pah”. Ia para lá. Aconteceu isto, olha. 

Ricardo: Foi antes do coronavírus ou na mesma altura?

Emílio: Antes, tipo 15 dias. Tinha já esse plano feito. Para ir para a Madeira tem de se ter um plano B já, ter alguém lá ou assim. Principalmente para trabalhar na minha área. Passar férias é diferente. Já tinha decidido fazer isso por uma questão de economia. Viver no meu carrinho. Se tiveres um lavadouro perto podes tomar banho quando quiseres e te apeteça. A lavandaria está ali em cima, logo. É como se faz as coisas.

VIII

Will: Obrigado.

Ricardo: Há quanto tempo é que estás a tocar?

Will: Agora, há uma hora. Estou aqui há uma hora. Mas já estive aqui à tarde. E à tarde não havia ninguém. Toda a gente me ignorou. […] As pessoas com uma mente desligada. Toda a gente. Estive aí duas horas. Em duas horas deram-me uns três euros. Fiquei mesmo… Às tantas cheguei aqui cheio de energia, cheio de otimismo e a curva foi assim…

Ricardo: Pareces mais cansado.

Will: Apetece-me desistir. Cansei-me mesmo. Desisti e disse “Olha tenho de voltar à noite”.

Ricardo: Mas pareces mais cansado do que quando falámos…

Will: Estou cansado. Não dormi esta noite. Dormi nas escadas. Não cheguei a ir ao meu quarto.

Ricardo: Porquê?

Will: Não tinha dinheiro para pagar o quarto. […] Também já não tinha muito energia sequer. Fiquei lá a tocar para mim. Estive a ler. Tenho montes de livros. Às tantas adormeci mesmo ao ar livre, nas escadas. Não é a primeira vez que isso acontece.

Ricardo: Sabes que na última vez que falámos, falámos há duas semanas já…

Will: Entretanto fui avô. Há quatro dias. Foi a primeira vez que fui avô.

Ricardo: Como é que soubeste?

Will: Foi uma pessoa – como não tenho telefone, ainda não tinha telefone – que veio mesmo ter comigo, veio mesmo à minha procura. A minha primeira mulher, mãe da minha filha, mandou essa pessoa para me procurar e contar essa notícia.

Ricardo: Pelas ruas de Lisboa?

Will: Sim. Ela sabia mais ou menos que eu estava ou nas escadas ou aqui. São os dois sítios onde eu toco. Pronto. É isso. Fui avô a primeira vez.

RicardoWow. Parabéns. Estás feliz?

Will: Ainda não tive oportunidade de ver a minha neta.

Ricardo: E já falaste com a tua filha?

Will: Ainda não. Mas, quer dizer, já deixei recado. Tenho os contatos todos. Agora tenho de comprar mesmo um telefone.

Ricardo: Mas olha, eu tenho um telemóvel em casa que não uso.

IX

Emílio: Isto vai passar, obviamente. ‘Penso eu de que’, como diria o Pinto da Costa. Mas vai ser um bocadinho duro, como está a ser duro.

Ricardo: Mas estás pronto para dia dois ir para a…

Emílio: Obviamente. Estou pronto para ir trabalhar, como todo o mundo. Estamos ansiosos para ir trabalhar. O que para alguém [para quem] antigamente o trabalho já era uma monotonia, agora é uma ansiedade. Sabes como é. Eu e todo o mundo. Tu não paraste com o teu trabalho. Agora nós com a rua vazia não dá para trabalhar.

Ricardo: Pois. Ontem vi o Will a tocar aí na rua.

Emílio: Ele ainda vai para aí. […] Tem uma força maior dentro dele, mesmo sem ninguém. Aí, safa-se na mesma. O trabalho dele é diferente do meu. Sabes que música é música e homem-estátua é diferente.

X

Will: Eu não posso ficar assim, trabalhar assim. Tenho de… Não sei. Não sei ainda. Espero que mude qualquer coisa. Para já tenho de arranjar outra guitarra. Isso hei-de arranjar. Uma boa guitarra. Preciso de uma guitarra. Eu também queria gravar, não posso gravar com uma guitarra dessas.

Referências: https://fumaca.pt/a-resistencia/
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