(Nota: o que vais ouvir, ler ou ver foi produzido pela equipa do Fumaça, um projecto de jornalismo independente, e foi originalmente publicado em fumaca.pt.)
Contava escrever-vos este texto de Ramallah. Há mais de dois anos, quando, no final de 2017, eu e a Maria Almeida estivemos na Palestina a gravar o que mais tarde resultaria na série “Palestina, histórias de um país ocupado”, que quero voltar àquele país – talvez a saudade tenha nascido ainda antes de me vir embora do país. Lembro-me do cheiro a especiarias nos mercados de Belém, Jerusalém e Ramallah; do café com grãos de cardamomo, oferecido como quem pergunta se queremos água, a que era impossível dizer não; dos campos de oliveiras e das casas de pedra que compõe as cidades e vilas mais bonitas que alguma vez vi; lembro-me de acordar ao som da adhan vinda da mesquita mais próxima; da comida.
Mas o que mais me ficou na memória foi o povo. Os palestinianos e as palestinianas que conheci revolucionaram a minha maneira de olhar “o outro”. Para eles e elas, não havia “outro”. Tudo nos era oferecido como se fizéssemos parte, como se estar ali fosse um ato de luta – a sua luta. Estar na Palestina é viver como se todos os momentos fossem a última oportunidade de ser. Porque não se sabe o dia de amanhã. Lembro-me da frase que se lê na parede do escritório da Stop The Wall, uma organização não governamental que tem como objetivo derrubar o muro que separa a Cisjordânia do território que Israel reclama como seu: “to exist is to resist (existir é resistir)”.
Contava escrever-vos este texto de Ramallah. O voo estava comprado, os planos estavam feitos, entrevistas marcadas e as férias – que nunca o são – marcadas. Partiria a 30 de abril e voltaria um mês depois, com mais uma história para publicar. Não sabia ainda qual – nunca sei até me sentar a escrevê-la -, mas haveria de ter uma. Depois, aconteceu tudo isto da pandemia. O voo foi cancelado, a viagem suspensa, os planos furados. Só que os problemas e as injustiças, continuam por lá, talvez ainda mais agudos.
Se Portugal se fechou em si mesmo desde março, com fronteiras fortemente limitadas, operações policiais à saída de concelhos, proibição de ajuntamentos e constante estado de alerta, nada disso é novo para a população palestiniana. A Faixa de Gaza sofre um bloqueio internacional imposto por Israel e o Egito, desde 2007. Há mais de duas décadas que quase dois milhões de pessoas – das quais dois terços são refugiadas e metade são menores – vivem dentro de um retângulo de 365 quilómetros quadrados do qual não podem sair sem autorização de um dos governos, onde apenas uma em cada dez casas tem acesso a água potável e onde estão sujeitos a mais ou menos constantes massacres por parte da força colonizadora – o último genocídio foi exatamente há dois anos, quando 195 pessoas foram assassinadas pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) (incluindo 41 crianças) e 29 mil ficaram feridas. Talvez o tampão a que Gaza é sujeita explique porque apenas existem, até hoje, 20 casos de pessoas atingidas pela Covid-19. Contudo, medidas restritivas impostas pelo governo israelita para controlar a transmissão do coronavírus podem resultar numa ainda maior restrição da ajuda humanitária, deixando a população numa posição ainda mais frágil. Em 2012, uma comitiva da Organização das Nações Unidas visitou a Faixa de Gaza e publicou um relatório impressionante: não havendo mudanças políticas drásticas, a região seria inabitável em 2020. Chegámos a esse ano.
Se, no resto da Palestina, o movimento de pessoas era já muito restringido pelo IDF, com checkpoints a cada poucos quilómetros e um muro que lhes limita a entrada em Jerusalém e ao resto do território ocupado, tudo ficou pior a partir do início de março, quando começaram a ser introduzidas medidas de contenção do vírus por parte da Autoridade Palestiniana e Israel. O governo de Netanyahu ordenou mais limitações na passagem de um lado para o outro do muro. Apenas “trabalhadores essenciais” poderiam atravessar o checkpoint na condição de permanecerem do lado de lá durante mais de um mês, sem voltar às suas casas. Não mais do que 50 mil pessoas aceitaram as condições, o que resultou na perda de rendimentos para dezenas de milhares. Além disso, a pretexto da saúde pública, legisladores israelitas aprovaram, há cerca de dois meses, um mecanismo de vigilância (apresentado como temporário) que permite às forças de segurança monitorizarem cidadãos que tenham sido contaminados pelo vírus e quem com eles tenha privado.
Tudo isto tem sido posto em prática por Netanyahu, um primeiro-ministro muito criticado, acusado de corrupção e que enfrenta julgamento nos tribunais israelitas a partir do final deste mês. Um primeiro-ministro que ficou aquém da maioria parlamentar que lhe desse poder para conseguir formar governo em três eleições consecutivas num espaço de um ano e que, ainda assim, decidiu firmar um acordo com o maior partido da oposição que o indicará primeiro-ministro a partir de hoje, durante 18 meses (para depois trocar a cadeira com o seu parceiro Benny Gantz, para os segundos 18 meses). Um acordo que dá luz verde à anexação de colonatos ilegais e permite a expropriação e pilhagem de terras palestinianas, como desenhado no “plano para a paz”, anunciado, em janeiro, por Donald Trump, e negociado entre os Estados Unidos da América e… Israel. Ou, por outras palavras, um plano para a paz para a Palestina negociado sem palestinianos.
Amanhã, passarão 72 anos desde a Nakba – ou catástrofe, em português -, data em que se assinala a destruição e limpeza étnica perpetradas pelas forças israelitas em 1948, altura em que metade da população palestiniana foi expulsa e 500 vilas foram destruídas para dar lugar ao Estado de Israel. Setenta anos depois, não há paz à vista. E, enquanto políticas de apartheid continuam a ser implementadas para condenar um povo à subjugação, haveremos sempre de ter outros problemas mais importantes a resolver. O Covid-19 é só mais um.